
O Liverpool era o campeão inglês e europeu em título. Já a Juventus detinha o estatuto de melhor equipa italiana e tinha vencido a última Taça das Taças.
A expectativa era enorme, toda a Europa estava presa no pequeno ecrã. Mais de 58 mil espectadores distribuíram-se pelo Estádio Heysel, em Bruxelas, com cada clube a ter cerca de 25 mil adeptos no local, enquanto o restante público ocupava a chamada zona neutra.
No entanto, a escolha revelou-se fatal. Heysel tinha mais de 50 anos, estava degradado e com falta de manutenção, além das várias falhas de segurança que se podem apontar às autoridades. Apesar dos dirigentes de ambos os clubes terem alertado a UEFA para o mau estado da infraestrutura e pedido inclusive a mudança de local para o grande jogo, os apelos não foram atendidos.
A tensão era palpável horas antes do pontapé de saída. 364 dias antes da tragédia de Heysel, o Liverpool tinha disputado e vencido a final da Taça dos Campeões Europeus diante da Roma, no Estádio Olímpico (1-1, com golos de Phil Neal, aos 13 minutos, e Roberto Pruzzo, aos 42; 4-2 no prolongamento). Já a 16 de maio de 1984, a Juventus vencera o FC Porto na final da Taça dos Clubes Vencedores das Taças, por 2-1, no St. Jakob Stadium, de Basileia. Beniamino Viglona inaugurou o marcador aos 12, António Sousa empatou aos 29, mas o polaco Zbigniew Boniek desfez definitivamente a igualdadae aos 41.
Prelúdio para a tragédia
Nessa final da Taça dos Campeões em Itália, que se tornou extremamente tensa e dramática, o Liverpool enfrentou uma atmosfera hostil e a forte pressão dos adeptos transalpinos, uma vez que a Roma jogava em casa. Os Reds acabariam por conquistar assim o seu quarto título europeu.
A noite após o jogo em Roma intensificou a animosidade em relação aos adeptos italianos e criou um sentimento de injustiça e desejo de vingança. Rumores sobre uma possível retaliação por parte dos adeptos do Liverpool circularam durante meses e o ambiente em Bruxelas, onde se realizaria a final entre Liverpool e Juventus, parecia à beira de escalar de forma grave.
O fatídico setor Z
Em Bruxelas, a tensão aproximava-se do seu nível máximo. Os adeptos de ambas as equipas carregavam o peso de confrontos anteriores e as memórias de Roma em 1984 deixaram marca profunda no comportamento e no estado de espírito dos britânicos. Essa carga emocional, juntamente com a má organização e as medidas de segurança inadequadas, criou as condições para a tragédia que se seguiria.
No dia do jogo, os adeptos concentraram-se pela cidade, e o álcool e as provocações potenciaram essa tensão já latente. Os organizadores decidiram colocar a zona neutra (setor Z) entre as duas fações de adeptos, mas a maioria dos bilhetes para o setor foi comprada por adeptos da Juventus, principalmente da comunidade italiana na Bélgica.
Cerca de uma hora antes do início do jogo, os confrontos verbais e físicos intensificaram-se nos setores X e Z, onde os adeptos do Liverpool romperam a frágil vedação e avançaram para a zona neutra, repleta de adeptos da Juventus. Em pânico, centenas de pessoas tentaram fugir, mas depararam-se com um muro de betão que lhes impediu a fuga.
Sob a pressão da multidão, o muro cedeu e desabou, e muitas pessoas foram esmagadas ou pisadas.
As consequências foram trágicas: 39 pessoas morreram, dos quais 32 italianos, quatro belgas, dois franceses e um norte-irlandês, e outras 600 ficaram feridas. Entre as vítimas estavam crianças, mulheres e espectadores neutros.
O medo das autoridades em cancelar o jogo
Apesar dos pedidos da Juventus para cancelar o jogo, a UEFA e as autoridades belgas decidiram que a final deveria ser disputada, temendo distúrbios e caos ainda maiores caso isso não acontecesse.
Os jogadores entraram em campo visivelmente abalados e o jogo terminou com a vitória da Juventus por 1-0, com um golo do francês Michel Platini, de penálti. Era o primeiro troféu de campeão europeu da Vecchia Signora.
Mas não houve lugar a festejos. O futebol nesse dia foi a coisa menos importante do mundo, totalmente envolto pelo trágico incidente.
A responsabilidade pela catástrofe foi dividida entre os hooligans ingleses, a má organização, a resposta inadequada da polícia e o estado deplorável do estádio.
A UEFA tomou uma decisão histórica imediatamente após o incidente: todos os clubes ingleses foram banidos das competições europeias por tempo indeterminado, mais tarde definido em cinco anos. A punição do Liverpool foi prolongada para seis anos, embora mais tarde tenha sido reduzida para cinco.
Prisão para 14 adeptos do Liverpool e ponto de viragem no futebol europeu
Um tribunal belga condenou 14 adeptos do Liverpool por homicídio involuntário, com três anos de prisão, dos quais cumpriram um. Alguns polícias e dirigentes de futebol belgas também foram punidos por falhas na organização e segurança.
Heysel marcou um ponto de viragem no futebol europeu e inglês. Seguiram-se a modernização dos estádios, regras de segurança mais rigorosas, a separação de adeptos e a proibição de álcool nas bancadas. A tragédia, juntamente com o posterior desastre de Hillsborough, levou a reformas que tornaram os estádios mais seguros e gradualmente afastaram o hooliganismo dos campos de futebol.
Hoje, décadas depois, Heysel permanece um símbolo dos perigos do hooliganismo, da má organização e da negligência com a segurança dos espetadores. As famílias das vítimas e os sobreviventes ainda carregam as feridas desse dia, e tanto Juventus como Liverpool prestam regularmente homenagem aos mortos, lembrando que o futebol nunca deve ser mais importante do que a vida humana.