O homem sonha, a obra nasce. Uma curta passagem presente no célebre livro 'A Mensagem', de Fernando Pessoa. Por vezes, no contexto futebolístico, utilizamos esta expressão para abordar campanhas históricas, fora da caixa, marcadas pelo fator 'uau' - associado, evidentemente, à surpresa e à escassa probabilidade de concretização da incidência. Todavia, no que toca a este artigo, o respetivo excerto irá dar o mote para uma abordagem mais literal.

Com o aumento do sucesso clubístico, surge a necessidade de aprimorar as condições do projeto. Que o diga o Strasbourg, emblema que tem aumentado o seu protagonismo no contexto francês. O Racing quer alcançar as competições europeias na próxima temporada, fenómeno bastante realista face à conjetura atual da tabela classificativa. Como tal, os RCS foram obrigados a investir uma grande quantia monetária para o aumento da capacidade do seu estádio - de 27.500 para 32.000 espectadores, mais precisamente.

Para transformar o ideal em algo concreto, foi apontada uma empresa portuguesa, responsável por colocar em prática uma resolução inovadora. O zerozero esteve à conversa com Rolando João Pereira, diretor do projeto, para entender o que torna esta expansão tão especial, bem como as principiais dificuldades associadas à edificação de uma estrutura desportiva com estas características.

Muitos milhões para um único propósito

Inaugurado em 1906, o Stade de la Meinau, conhecido, à época, como Jardin Haemmerlé, serve de casa ao Strasbourg desde 1914. Todavia, durante uma fase inicial, a equipa chamava-se FC Neudorf, já que a respetiva comuna pertencia à Alemanha, após a Guerra Franco-Prussiana.

Depois de quatro expansões ao longo dos anos, realizadas em 1921, 1931, 1951 e entre 1979 e 1984, a Blocotelha, empresa sediada em Porto de Mós, foi indicada para colocar as mãos na massa, num novo avultado investimento do clube, avaliado em 160 milhões de euros.

Rolando confessou que a vitória do planeamento luso provocou algum espanto, não desmerecendo as qualidades da firma: «Ficamos um pouco surpreendidos. No entanto, nós concorremos sempre nos projetos para ganhar. Não nos candidatamos se não tivermos confiança no nosso trabalho, porque seria uma valente perda de tempo.»

O projeto exige esforços em segmentos distintos do imponente complexo. A missão abrange o prolongamento da bancada sul, a reestruturação da bancada oeste, a renovação das bancadas norte e leste, a construção de um pavilhão para a área de adeptos e de um pavilhão complementar. Posto isto, face às múltiplas tarefas pendentes, o plano estratégico tem de ser minucioso, a priori.

«Estamos a intervir em toda a zona do estádio. Nesta fase, estamos a fazer a pala da Tribuna Sul, que foi reconstruída. A parte de betão e a própria estrutura metálica foram moldadas do zero. Já a Tribuna Oeste e Norte vão manter as palas existentes, apesar de estar previsto o crescimento das fachadas», salientou o diretor do projeto sobre o atual foco de ataque.

Do curto espaço temporal aos horários restritos

Com uma edificação que exige esforços redobrados, é normal existir uma vasta gama de problemas. Rolando rapidamente identificou algumas dificuldades, sendo o espaço temporal uma das preocupações a entrar no respetivo lote.

«Estamos a falar de um projeto que envolve 1.700 toneladas de aço para a constituição de 11 mil metros quadrados de cobertura. Logo por aí, já é um projeto bastante ambicioso. Temos várias especialidades a trabalhar em prol da mesma causa, mas a verdade é que o tempo é bastante limitado. A Tribuna Sul, por exemplo, tem de estar pronta para o primeiro jogo do clube na próxima época», enalteceu, numa primeira instância.

«Existe, ainda, outro fator importante que deve ser tido em conta. Estão a haver jogos do Racing durante a reestruturação, portanto, nós estamos a trabalhar ao mesmo tempo que o calendário da instituição é cumprido, tanto os jogos masculinos como femininos. Para além da planificação muito bem estruturada, necessitamos de garantir a segurança dos espetadores e de minimizar as interferências nas operações do clube», prosseguiu.

Segundo o entrevistado, estas complicações têm sido ultrapassadas com sucesso, assegurando que tem existido uma boa sinergia com as restantes empresas francesas envolvidas. Também no que diz respeito à comunicação, a nota permanece positiva: «Nós trabalhamos com a modelação BIM [construção virtual que auxilia na edificação real], algo que nos ajuda bastante na otimização do design, no planeamento da edificação e na transmissão de ideias entre as diferentes especialidades.»

«Desta forma, se existe algum problema estrutural, visualizamos esta plataforma todas as semanas com as diferentes secções, numa reunião de duas horas. Temos um chefe responsável, única e exclusivamente, por esta vertente, que capta os problemas que cada empresa tem vindo a ter, bem como eventuais soluções para determinadas situações. É a forma mais clara para cada departamento se fazer ouvir», frisou ainda.

Inovação de mão dada com a sustentabilidade

Um dos principais pontos de interesse deste trabalho de construção passa pela fonte da matéria-prima: o metal que irá ser utilizado para a criação da bancada sul é proveniente da fuselagem de 30 aviões Airbus A340. A respetiva ideia surgiu da Populus, gabinete de arquitetura responsável por projetar a obra. Assim, esta reutilização dos materiais aglomera inovação e sustentabilidade.

@Bernardo Coelho/Blocotelha

«A ideia foi muito bem recebida da nossa parte e nós acabamos por subir as expectativas do cliente. Uma das grandes promessas passou sempre pela pegada de carbono. O aproveitamento das carcaças dos aviões também reduz os meios de transporte necessários, bem como as etapas relacionadas com o processo de transformação», disse o diretor do projeto, antes de completar o seu raciocínio.

«O objetivo da obra passa então pelo reaproveitamento dos materiais. Se a solução é alinhada com as tendências atuais da construção ecológica, também é fundamental ter em atenção todos os malefícios adicionais. O impacto ambiental não deve nunca ser descurado

A mão-de-obra lusa tem sido vital para a conjetura do projeto. Nesta fase, de acordo com o entrevistado, estão entre 25 a 30 portugueses a trabalhar no local, fora os múltiplos colaboradores no back office. Questionado sobre se foi fácil convencer os trabalhadores a partirem nesta aventura fora de portas, Rolando não hesitou na resposta.

«A Blocotelha já está há muito tempo no mercado francês, isto não é algo novo. Portanto, nós temos equipas com quem já trabalhamos há largos anos, estando bem enraizadas neste paradigma. A verdade é que não foi difícil convencer as pessoas. Cada vez mais empresas portuguesas querem trabalhar fora do país para conseguirem projetos mais ambiciosos, com outro tipo de qualidades e exigências», ressalvou.

«Com as vitórias do Strasbourg ficamos mais motivados»

O permanente contacto com os bleu et blanc levou a que os construtores angariassem uma nova paixão: «Temos acompanhado os jogos, até porque também já somos patrocinadores da equipa. Já percebemos que o clube tem uma enorme base de adeptos e que a cultura de ir assistir futebol ao vivo está profundamente enraizada na região. Todas as partidas têm o estádio cheio e sentimos que há um envolvimento genuíno da comunidade.»

O português Diego Moreira tem ajudado no sucesso coletivo dos RCSA na presente época @Strasbourg

Rolando assegurou que o sucesso desportivo da formação gaulesa ajuda os índices anímicos do seu núcleo: «Quando vemos os bons resultados do Strasbourg ficamos, ainda, mais motivados para dar o nosso melhor aqui na obra. Queremos entregar um projeto à altura da expectativa de todos os adeptos e de toda a comunidade.»

É este o maior projeto da história da empresa lusitana? Bem, o diretor de obra descarta comparações: «Não diria que este é o mais impactante, mas é bastante ambicioso. Tem uma enorme visão exterior, já que se trata de um emblema icónico, que está a mostrar que pertence ao top-10 de França. Trabalhar na modernização de um estádio histórico é uma honra para nós, principalmente tendo em conta a inovação sustentável. É um reflexo da nossa visão para o futuro.»

Entre a idealização e a conceção, ainda há um grande trabalho pela frente, que promete gerar algumas dores de cabeça antes do suspiro final. Recorde-se que a conclusão da obra está prevista para março de 2026.