
Fernando Gomes tomou, esta terça-feira, posse como presidente do Comité Olímpico de Portugal. Durante o primeiro discurso, o agora líder daquele organismo começou por destacar a necessidade de "terminar com a era da ignorância", pediu ao governo a criação de um "grupo de trabalho" para perceber o que aconteceu nos últimos oito anos e revelou que cessou funções na UEFA e na FIFA para trabalhar a tempo inteiro no COP.
Leia o discurso de Fernando Gomes na íntegra:
"A todas e a todos, muito grato por estarem presentes nesta cerimónia. Excelentíssimo Senhor Presidente da República, Excelentíssimo Senhor Primeiro-Ministro, Excelentíssimo Senhor Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Excelentíssimo Senhor Ministro dos Assuntos Parlamentares, Excelentíssimo Senhor Secretário de Estado do Desporto, senhoras e senhores.
Há uma série da Netflix a espantar a Europa e o mundo. Chama-se Adolescência. Uma produção densa, dura, dilacerante e profundamente atual. Nela se mede o impacto e a dimensão do silêncio, do que não vemos, mas está diante de nós todos os dias. Sem a dimensão trágica e contundente desta história, que aproveito para recomendar a todos, o desporto vive a maioria das vezes no silêncio.
Só se ouve a água puxada pelo canoísta na manhã fria do inverno, só se ouve o eco de paredes altas no pavilhão em que aquela jovem empunha o sabre, o florete ou a espada. E ouvem-se tantos e tantos outros silêncios. Demasiados silêncios. De repente, num mês de verão, em anos pares de quatro em quatro, vem um ruído desabrido.
Um sobressalto geral que espanta e assusta. Ou não fosse tão atrevida a ignorância. Não das federações. Não dos atletas. Não das equipas. Mas de tudo o resto. De tudo o que não são elas e eles. Os pais deles sabem. Os avós, tantas vezes também. Eles e elas e os seus colegas da mesa do lado. Saco em cima da mochila, gorro para o frio da noite. Na maioria das vezes, boas notas. E uma vida além da vida daquele e daquela adolescente.
A vida do desporto. De qualquer desporto. A era do silêncio e da ignorância precisa de terminar. É nossa obrigação acabar com elas. De vez. E é isso que vamos fazer. A honra que sinto por suceder a um dos maiores pensadores da história do desporto português de sempre, José Manuel Constantino, é proporcional à responsabilidade que tenho de dar vida ao seu legado e à sua visão.
Que ninguém se esconda. Estado, empresas, comunicação social. Sintamo-nos todos do mesmo lado para um objetivo maior, para que o silêncio e a solidão de milhares de raparigas e rapazes por Portugal inteiro vá deixando de existir, para que nos sintam verdadeiramente ao seu lado. Que aquelas caóticas chegadas ao aeroporto, onde os recebemos sempre que conseguem uma medalha maior, sejam abraços e incentivos quando lutam sozinhos, quando parece que só eles, os seus pais e as suas federações, acreditam neles.
E aqui queria deixar uma nota especial às empresas. Vou procurar-vos a partir de amanhã. Em todas elas espero poder encontrar uma genuína vontade de se juntar a um movimento único e pioneiro de financiamento aos atletas de alta competição, que nos leva a ter em Los Angeles uma equipa mais reconhecida, menos solitária, mais apoiada e mais perto de ganhar.
Amigas e amigos, o Comité Olímpico de Portugal vai ter, pela primeira vez na história, uma mulher a exercer o cargo de Secretária-Geral. Peço-vos a todos um grande aplauso de incentivo para a nossa Diana Gomes. A Diana, como todos os atletas aqui presentes, sabe o que significa o silêncio. Apenas o som da água nos ouvidos e os olhos no chão do fundo da piscina.
Sozinha, ela e o seu clube, ela e a sua família. Ela e a sua federação. É com ela que o Comité Olímpico de Portugal vai também ser maior. E ela é mulher, é portuguesa, é nossa olímpica e será agora uma dirigente das maiores de Portugal. Preciso eu, e precisamos todos, muito, da sua inquietude, da sua energia, da sua persistência e da sua alma de vencer.
Muito obrigado, Diana. Por acreditares neste caminho e por ires ajudar tanto o desporto português. A chegada da Diana a este cargo coincide com a recente eleição para Presidente do Comité Olímpico Internacional de Kirsty Coventry, a primeira mulher a ocupar tal cargo, decorridos 131 anos de vida do olimpismo moderno.
E também ela antiga nadadora como a nossa Diana. Podemos olhar para este momento como um sublinhar do atraso em que tudo isto aconteceu, mas prefiro olhar com os olhos otimistas do futuro. À nova Presidente do COI, endereço desde já os meus votos de sucesso. A sua eleição representa também um relevante marco na evolução do papel da mulher no desporto.
Caras e caros amigos. É nosso compromisso de honra seguir um caminho seguro da afirmação da mulher e lutar sem rodeios contra qualquer tipo de discriminação. É nosso compromisso afirmar a centralidade do atleta no sistema desportivo. Para isto acontecer, não há lugar nem tempo para nos escondermos. Nem o Comité Olímpico, nem as federações, nem o Estado, nem as empresas, nem a comunicação social. Da cultura desportiva e do compromisso com o desporto, nasce o fim do tal silêncio com o qual todos juntos temos de acabar.
Desde logo o Estado. Tenho a certeza de que, aconteça o que acontecer no dia 18 de maio, o Governo vai perceber definitivamente esta centralidade e a ambição de um plano claro e mensurável para os nossos objetivos comuns. Sei que, independentemente desse resultado, o desporto precisa de olhar para as suas fontes de financiamento e perceber se elas estão a contribuir para o equilíbrio e competência ou se estão a aumentar a vertigem que existe entre o futebol e todo o restante universo desportivo de muitos milhares de jovens talentos.
Não adianta fugir do concreto porque é lá, no concreto, que encontraremos as respostas. Disse-o quando liderava a Federação de Futebol. Reafirmei-o na campanha destas eleições e concretizo agora. O Comité Olímpico de Portugal, juntamente com as suas federações, entende que a avaliação da aplicação das receitas provenientes das apostas desportivas é nuclear.
Instamos o Governo a criar de imediato um grupo de trabalho que possa, de forma rápida e objetiva, analisar o que aconteceu nestes últimos oito, nove anos e perceber onde podemos introduzir ponderadores que fomentem uma distribuição mais concorrente com o êxito desportivo. Reforcei a minha consciência durante esta campanha eleitoral, que defender o olimpismo é uma tarefa que exige uma defesa coletiva da maior à mais pequena federação.
Neste sentido, queria dizer-vos hoje a todos, hoje em primeira mão, que esta manhã informei pessoalmente o Presidente da FIFA e o Presidente da UEFA, líderes das maiores organizações desportivas do mundo, e onde tenho assento no órgão da liderança maior, por eleição dos meus pais, que cessarei funções de imediato.
O Comité Olímpico de Portugal é, a partir de hoje, a minha vida. A tempo inteiro e em exclusivo, sem amarras e sem agenda que não seja a defender os atletas, o olimpismo e o desporto nacional num todo.
Caras, amigos e amigos, sou um dirigente de poucas palavras, muito de fazer. E sempre focado em objetivos. O mais importante a partir de hoje é o rendimento e os resultados. Mas sei, sabemos todos, que antes de resultados há trabalho, antes de rendimento há consistência. Nenhum grande atleta ganha sem antes perder muitas vezes e resistir a esse peso da solidão, do silêncio, da ignorância e da derrota.
E se os nossos campeões, os que já foram e continuarão a ser, e os que ainda não foram, mas vão ser, se fortalecem em cada momento de sofrimento, nós teremos de estar ao seu nível.
Aqui ninguém vai baixar os braços, nem vai virar a cara às dificuldades. A campanha eleitoral terminou. As federações olímpicas e não olímpicas, que entenderam apoiar o Dr. Laurentino Dias, que mais uma vez saúdo de forma calorosa, são, aos meus olhos e aos de todos, tão importantes como qualquer outra. Se o resultado fosse diferente, sei que também seria assim. Estamos no caminho do espírito e dos valores olímpicos. É a eles que recorremos sempre.
Amizade, respeito e excelência. O trabalho arranca hoje. O nosso programa foi sufragado. E amanhã mesmo já teremos uma reunião alargada com todas as federações, para melhorar ainda mais.
Terminou o tempo das palavras. Começa agora o tempo da ação. É para esse tempo que convoco todos. Pelo olimpismo, pelos nossos atletas e por Portugal".