
Em 2007, a leiloeira Christie’s organizou um leilão na cidade de Devizes, Wiltshire, na Inglaterra. A protagonista desse leilão era uma chave. Uma banalíssima chave. Uma chave que seria custosamente disputada por vários licitadores. Por telefone, um empresário chinês ganhou o leilão. Comprou a chave por 90 mil libras.
Afinal, uma das razões porque, em 1912, o Titanic afundou foi a falta de binóculos na torre de vigia. Não é que faltassem binóculos a bordo. Estavam era guardados num armário cuja chave, (a tal chave banal), ficara na posse do segundo oficial David Blair, que foi substituído à última hora por Henry Wilder, um marinheiro mais experiente.
A bordo do navio “Majestic”, o mesmo Blair seria um dos primeiros a acudir aos sobreviventes do Titanic. Chegou a atirar-se às águas geladas do mar do Norte para salvar um tripulante, o que lhe valeu uma medalha de bravura.
Um dos vigias, Frederick Fleet, declarou à Comissão de Investigação que “Se tivéssemos binóculos, poderíamos ter visto o iceberg um pouco mais cedo”. A importância fatídica de uma simples chave demonstra que, muitas vezes, as grandes tragédias devem-se a pequenos detalhes. Não faltam exemplos destes na história. Bem como do seu oposto. É também por causa da atenção excessiva que se dá aos pequenos detalhes que as grandes tragédias podem ocorrer.
A White Star Line estava tão obcecada com os luxos e os requintes do Titanic que ignorou o imperativo agoirento de instalar botes salva-vidas onde cabessem todos os seus tripulantes. Por vezes não temos falta de meios ou de conhecimentos, apenas nos falta a perspectiva.
Be afraid, be very afraid
No que diz respeito à educação encontramos inúmeras ilustrações de como perder a perspectiva das coisas nos pode conduzir tantas vezes ao naufrágio. A mais relevante de todas é o descrédito, o desprestígio que a sociedade hoje descarrega sobre as escolas e sobre os professores. Afundados em bijuterias administrativas, desprovidas de congruência e saturadas por medos vários, as escolas e os professores são obrigados a viver sob uma espada de Dâmocles, presa por um fio de crina de cavalo que acreditam poder cair a qualquer momento.
As escaramuças entre pais e professores ou entre pais e direcções escolares são cada vez mais frequentes e temidas. Escolas há onde proferir a palavra “pais” produz um pânico generalizado. Portanto, para se precaverem de todas e quaisquer eventualidades, por mais remotas e incoerentes que sejam, as escolas ocupam-se em pedir a autorização dos pais para tudo e mais alguma coisa.
Quase chega a parecer que se pretende isentar a escola de toda a responsabilidade. A amnistia integral. Parece seguro, mas é aqui que reside o detalhe maligno da coisa.
A escola vive a olhar por cima do ombro. Sente-se perseguida de perto e ameaçada pelos pais. A escola precisa de amparo e não de intimidação. A comunidade tem de reaprender a confiar na escola. Não se pode transformar o acto educativo num processo de cerco e perseguição judicial.
O Santo Graal da administração escolar parece ser o da sua completa irresponsabilização, um sistema educativo em que nada possa ser imputado à escola. A derradeira impunidade. Este estado de coisas é inadmissível.
Assassinaturas
As implicações deste medo irracional têm sempre o mesmo desfecho: a proliferação de autorizações e assinaturas que ocupa uma fatia gigante do trabalho burocrático dos professores e das escolas que deviam, ao invés, estar preocupados com os percursos educativos dos miúdos e pouquíssimo mais.
A quantidade de assinaturas que, num ano, se pede aos pais é bem reveladora desta maldição extemporânea das escolas em eximirem-se de responsabilidades que lhes competem quase inteiramente.
Um aluno vai a uma visita de estudo? É preciso que o encarregado de educação assine a autorização.
Um aluno faltou muito? É preciso que o encarregado de educação assine um plano individual de trabalho.
Os professores acham que o aluno deve seguir uma série de medidas universais de suporte à aprendizagem? Só o podem fazer se o encarregado de educação assinar um papel.
Um conselho de turma toma a decisão de recomendar que um aluno seja acompanhado por uma psicóloga escolar? Nada acontece até que um papel seja assinado por um encarregado de educação.
(Repare-se: não é indispensável que o encarregado de educação vá à escola ou fale com quem quer que seja; só não pode é deixar de assinar um papel).
A escola prescreveu aulas de apoio a um aluno com dificuldades? Só as terá depois de um encarregado de educação ter assinado um papel.
Um aluno com quatro, cinco ou seis negativas nunca pode chumbar pela segunda vez no mesmo ano, (retenção repetida) sem a consulta e envolvimento do encarregado de educação e uma parafernália de relatórios que ocupam horas e horas de dez, quinze, vinte adultos apenas para que o aluno tenha apenas aquilo que merecia desde o princípio.
E enquanto estão vinte adultos ocupados com assinaturas está o miúdo na praia a trabalhar para o bronze.
O matagal jurídico
Entendamo-nos: a participação dos encarregados de educação é uma conquista da democracia. A escola não é uma bolha. É bem-vinda essa integração dos pais no processo educativo. Ninguém o discute. Mas, por excesso de zelo, criámos um sistema, uma cultura administrativa em que se tornou impensável desburocratizar o que quer que seja.
Existe uma atmosfera de formalização jurídico-administrativa que afasta os professores dos seus alunos, afasta os miúdos dos seus pais, afasta as direcções escolares dos professores, afasta os pais dos professores e afasta os professores dos outros professores. Trabalha-se pior por causa desta selva densa de assinaturas e de formalidades inúteis e espantadas.
O sistema educativo vive num torpor administrativo sem perspectiva. A escola deveria poder fazer mais pelos miúdos sem perder tanto tempo com papéis e com logins. A latitude de uma escola tem ser ampliada. O encarregado de educação deve ter um constante e regulado poder de veto, que lhe confira a autoridade de um consentimento informado. Mas para além da matrícula, informações pessoais, regime de saídas e de faltas, pouco mais deveria ser exigido aos encarregados de educação durante o ano inteiro. Há muita coisa que pode e deve deixar de ser feita.
Chouriços legalistas
Faz sentido que se peça sempre a assinatura dos pais para tudo e mais alguma coisa. Ninguém nunca vai discordar de uma coisa assim. “Casa roubada, trancas à porta”, lembra o povo. Mas o problema é que, numa escola, essa prudência tornou-se um vício e é insustentável. Defrauda o tempo, rouba agilidade e desvia eficiência num processo que requer diligência, versatilidade e pragmatismo.
Existe nas escolas portuguesas um erotismo pelo pechisbeque administrativo. A escola pede assinaturas quando não devia e não as pede quando devia. Dir-se-ia que a escola vagueia entre o vazio legal e o enchido legal. A prontidão e a simplicidade não imperam. Há uma maneira muito mundana para dizer isto: encher chouriços.
Perdem-se horas, dias, semanas e meses à espera de assinaturas. É insuportável não poder cuidar de um miúdo porque o seu encarregado de educação demora a assinar um papel ou a clicar num botão.
O comportamento desviante da escola
E, não obstante, uma escola pode mudar um aluno de turma sem pedir assinatura dos pais.
Os critérios de avaliação não carecem da assinatura dos pais.
Um professor pode ser mudado sem a assinatura dos pais.
Um aluno pode ser suspenso por 1 ou 2 dias sem a assinatura dos pais.
Um aluno pode ser integrado num plano de tutoria sem a assinatura dos pais.
Há alunos que são retirados de visitas de estudo, de clubes ou de eventos escolares sem a assinatura dos pais.
Dezenas de questionários para alunos são preenchidos sem carecer de assinatura dos pais.
Centenas de miúdos ficam longas horas antes e depois do seu horário formal sem que nunca seja pedida aos pais qualquer assinatura ou declaração de consentimento.
Normalmente nestas circunstâncias, os pais são simplesmente informados, (quando são), sem que se careça de uma formalização signatária.
Dir-se-ia que em muitos destes casos, a falta de consentimento assinado retira protagonismo aos encarregados de educação e fragiliza a escola perante quaisquer problemas que possam surgir. É verdade. Mas o seu oposto também é. E é justamente por causa desta obsessão pela blindagem burocrática que se desencadeia muita paralisia pedagógica.
Furar a bolha
É indispensável voltar a confiar no trabalho da escola. As escolas sabem o que fazer com os miúdos. Tratam-nos melhor sem tanta assinatura e sem tanta insensatez. É necessário um novo compromisso com a escola.
Os encarregados de educação têm o dever de se manter informados e de contar com instrumentos eficazes para poderem agir e reagir a tudo o que diga respeito à vida do seu educando. Devem ser responsabilizados e sancionados quando esse dever elementar não é cumprido, por defeito ou por excesso. Lá porque uma coisa faz sentido não significa que deva ser entendida como uma prioridade ou, sequer, uma necessidade.
As limitações práticas de falta de recursos humanos e materiais, de tempo, impõem uma visão ágil e despachada do sistema escolar. Fazer sentido não implica que se coloque tudo em agenda.
Para afundar um Titanic inteiro e novinho foi só preciso deixar inundar cinco dos seus dezasseis compartimentos estanques. Quando o armário dos binóculos está fechado e não há quem tenha a chave, perde-se perspectiva, vai-se o discernimento e deixamos de poder ver sequer a ponta de um iceberg.