
"Se eu quisesse, enlouquecia" - frase retirada do texto "Estilo", o primeiro da obra "Os passos em volta" -- é o título desta monumental biografia, de quase 900 páginas, editada dez anos após a morte de Herberto Helder, pela Contraponto, na sua coleção "Biografias de Grandes Figuras da Cultura Portuguesa Contemporânea".
Nela, o sociólogo e crítico literário João Pedro George, que assinou também biografias de Luiz Pacheco e Fernando Pessoa, mergulha nas sombras e luzes da vida de Herberto Helder e revela o homem por detrás do poeta, fornecendo um retrato humano e literário do autor que passou a vida a fugir da fama.
Nas palavras da própria editora, "João Pedro George oferece aos leitores a história nunca contada de Herberto Helder, nome maior da literatura em língua portuguesa e mitificado não só pela obra, mas também pela necessidade de isolamento das mundanidades do mundo literário, das instituições, dos prémios e da exposição pública".
"Escritor puro e de raríssimo talento, capaz de criar, desde cedo, um lugar próprio nas literaturas de língua portuguesa -- poucos, como ele, exerceram tanta influência na poesia portuguesa da segunda metade do século XX --, Herberto Helder era, também, uma personagem por trás da qual o homem se escondia", acrescenta.
A pessoa que representava essa personagem, os abismos que guardava dentro de si, as recordações, os traumas e angústias que transportava, a sua capacidade de amar, a origem da força da sua poesia, foram tudo aspetos da vida de Herberto Helder que o biógrafo dissecou, através de cartas do próprio e de testemunhos inéditos de quem mais de perto com ele conviveu, para revelar "pela primeira vez, e com grande nitidez, o ser humano por detrás do poeta".
Deste retrato resultam aspetos mais controversos ou íntimos que poderão justificar uma declaração que João Pedro George faz no final do livro, no texto dos agradecimentos, segundo a qual "haverá coisas que a família e os amigos gostariam de ignorar", mas que ele, "como biógrafo, tendo-as descoberto, não poderia esconder".
Um dos aspetos que aborda é a infância difícil do poeta, vivida na Madeira, mas marcada pelo conflito com o pai e pela perda precoce da mãe, o que o levou a viver em constante fuga: migrou para Lisboa, passando por Trás-os-Montes, Coimbra, Paris, Bruxelas, Amesterdão, Antuérpia e Santarém.
Mais tarde, Herberto Helder cultivou amizades com marginais, prostitutas, loucos e artistas malditos, o que moldou a sua visão do mundo e da literatura e também lhe abriu as portas do meio literário.
A sua vida emocional e afetiva também foi conturbada, pois viveu em depressão e melancolia, teve duas mulheres e foi pai de dois filhos, mas segundo João Pedro George, não lhes deu o afeto esperado, e só se dava a sacrifícios pelo trabalho literário.
A muito se devem os testemunhos de quem privou de perto com Herberto Helder, primeiramente a viúva do poeta, Olga Lima, a quem João Pedro George agradece a "indispensável colaboração", tendo-o guiado "através das suas memórias de quarenta anos de vida em comum com um escritor de imenso talento, mas também de ego sombrio, difícil e bastante vincado".
Essas conversas, permitiram-lhe "ver o poeta e o ser humano pelos olhos da mulher que melhor o conheceu", descreve João Pedro George, acrescentando que a filha do poeta, Gisela Oliveira, acedeu a rever algumas informações "de outro modo impossíveis de clarificar", mas que o filho, Daniel Oliveira, "não quis colaborar", impossibilitando a correção ou o complemento de opiniões constantes da biografia, "nomeadamente o testemunho de terceiros".
Em "Se eu quisesse, enlouquecia" fica-se a saber que Herberto Helder passou fome e refugiou-se na solidão, foi perseguido pela PIDE e pela censura, teve empregos variados e alguns até insólitos, como angariador de clientes para prostitutas.
Contam-se ainda, entre as funções que desempenhou, delegado de propaganda médica, meteorologista, publicitário, redator de notícias na rádio e ajudante de produção na RTP.
Viveu em Luanda, como repórter, e conheceu os horrores da guerra, tendo escapado por pouco à morte.
O sociólogo quis "deixar claro" que procurou "fazer uma abordagem honesta tanto às qualidades como aos defeitos de Herberto Helder, um homem tão preso à terra como qualquer um de nós".
Entre as várias personalidades a quem agradece, não apenas os testemunhos, mas também terem-lhe disponibilizado cartas escritas por Herberto Helder ou documentos com informações sobre episódios indocumentados da sua vida, inclui-se a escritora e ensaísta Maria Estela Guedes, a quem João Pedro George atribui "descrições sobre curiosos traços da maneira de ser de Herberto Helder, em particular o modo como ele se serviu dos críticos e dos académicos para divulgarem a sua poesia".
"As suas informações permitiram-me construir uma imagem muito mais complexa e humana do poeta", acrescenta o biógrafo, para quem Herberto Helder foi um grande poeta e um grande mistificador, que se serviu de críticos e académicos para esculpir a própria estátua e preparar a posteridade".
João Pedro George escreve que, "com o tempo, Herberto Helder desenvolveu uma espécie de obsessão revisora". "Contraiu a doença da busca permanente da perfeição e pureza da língua, fazendo com que só conseguisse vislumbrar nos livros os erros cometidos".
"Corrigia-os assim que eram publicados, polia as frases sem descanso, para as renovar e purificar. As primeiras versões baseavam-se na livre associação de imagens, nascida do inconsciente, para serem depois disciplinadas pela inteligência. Uma inteligência penetrante, sempre tendida para a abstração, que o impelia a depurar os poemas de todas as imperfeições, como ervas daninhas num jardim muito bem cuidado".
Ao tentar desconstruir a figura mítica de Herberto Helder, João Pedro George encontrou, e revela aos leitores, "uma pessoa grande e pequena, ingénua e maliciosa, bondosa e perversa, humilde e vaidosa, cordial e calculista, inspirada e atormentada, brilhante e viciada na retórica, genial e machista".
"Um homem, enfim, em quem o vácuo moral corria parelhas com a grandeza dos momentos de altíssima inspiração".
AL // MAG
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