
Há dias, num jornal aqui ao lado, dois Joões arranharam-se. Um Miguel e outro Maria. À moda antiga: pelos jornais, por crónicas em pingue-pongue. Ora João Miguel, ora João Maria, em breves sessões de pugilismo. Lembro-me que li Vasco Vieira de Almeida dizer, em entrevista a Anabela Mota Ribeiro, que o râguebi, pelo tanto de contacto que tem, só pode ser jogado por cavalheiros. Sábio. Para mim, só pela forma, a polémica entre os Joões já valia a pena.
Mas a discussão teve sumo: a questão do privilégio. Afinal, quem é e quem não é privilegiado? Sem árbitro que exerça esse juízo, não há resposta fácil. Calha que há quem, com naturalidade, reconheça o privilégio. Começo eu: sou um privilegiado. Nasci numa família da classe média portuguesa. Nas escolas públicas em que estudei foram raros os dias em que faltaram professores, e sempre festejados, com pompa e sumo tutti-frutti. Depois sou de um sítio onde os hospitais públicos funcionam. Depois brinquei e brinquei muito, ralei os joelhos e usei roupas parvas na idade certa. Nunca me faltou nada; tive o essencial. Tive, ainda depois, as oportunidades certas.
Outros tiveram mais, é claro. Do berço, tiveram o dinheiro certo, a formação certa e, ao redor, as pessoas certas. Frequentaram e frequentam os sítios certos. Vestem-se e falam da maneira certa. Fazem tudo certo - o que está certo, claro: ninguém escolhe o berço onde nasce. Perceber que a família de onde se vem é uma verdadeira lotaria, requer que não se atirem pedras a quem surge numa família de privilégio. Por outro lado, que se muna de oportunidades quem não teve a mesma sorte. E aí só o Estado para o fazer: uma das razões da sua existência.
E veja-se: dizer isto não é dizer que só o nascimento dita o destino. Errado. O privilégio também se adquire ao longo da vida. Se João Maria o teve por berço, João Miguel adquiriu-o. Estão hoje na vida pública, ambos com mérito, quero crer, embora de origens diferentes. No início, o segundo terá dado mais braçadas que o primeiro, é certo, mas o tempo passou, como as gerações. Hoje ambos são privilegiados. Hoje ambos têm o acesso aos sítios certos e às pessoas certas.
O privilégio não se mede: reconhece-se. É percetível para quem não o tem, embora nem sempre o seja para quem o tem. Mas não se mede, reconhece-se. E eu, que também não nasci na capital, que em Portugal concentra tantas das oportunidades, nem sequer numa cidade, reconheço-o. Isto sendo eu um privilegiado. O privilégio, fora o financeiro, é sempre relativo: em relação ao outro; em relação a quem tem mais e a quem tem menos.
Foi nisso que os Joões se centraram. No “tu é que és” e no “e tu também não és, é?”. A verdade, como diz o povo, estará no meio das duas versões. E aqui o povo foram os leitores dos textos. Fui eu também. E, mesmo com os excessos retóricos que caraterizam, e bem, as polémicas, foi uma boa sessão de pugilismo. Houvesse mais disto: mais 1000 e tal carateres, em texto, do que os 280 do X. Sou dos que pensa que a forma importa — ainda mais quando o fundo é a própria ascensão social.
O que me recorda de “Taxi Driver” (1976), em que Martin Scorsese filma um veterano de guerra a observar a decadência da cidade, ao volante de um táxi. Nas conversas e nos comportamentos no banco de trás, ou pela rua, o protagonista via espelhadas as grandes questões dos anos 70. Os vários desafios sociais, políticos e económicos da grande metrópole, no lento andar do táxi.
Privilégio é, além da discussão, poder voltar a ter polémicas por texto. Esse lento andar do táxi, traduzido na espera pela resposta; pelo próximo texto. Como faziam os grandinhos. Por isso, já têm o meu obrigado, Joões. Agora se sou menos ou mais privilegiado do que vocês, já diria outro João, e mais meu, de seu nome João Pinto: prognósticos só no fim do jogo.
Por enquanto, não tenho o que reclamar.