Saiu do SNS, mas manteve-se ativo…

Sim, aposentei-me em novembro de 2023, mas sempre com a intenção de não deixar de exercer. Obviamente, houve uma redução drástica do número de horas de trabalho, mas durante 2024 integrei as Juntas Médicas de Verificação de Incapacidade na ULS da Arrábida com mais duas colegas, também elas recém-aposentadas, e mantenho um período semanal de trabalho na antiga Via Verde Saúde do Seixal, hoje USF Inovar, na ULS Almada-Seixal, onde tenho colaborado no seguimento de doentes complexos.

Porquê manter-se ativo no SNS, após a reforma? O que o atrai?

Em primeiro lugar, há uma ligação afetiva difícil de cortar. As razões são emocionais e também de convicções. Trabalhei no SNS mais de 40 anos e não é fácil sair! Além disso, sinto que ainda tenho condições físicas e mentais para exercer e que ainda posso ser útil. Mas é preciso perceber que há mais vida além da medicina. Depois de 40 anos de prática também devemos olhar para as nossas famílias que foram sempre fortemente sacrificadas e secundarizadas. Colabora-se quando faz sentido para nós e para a estrutura, mas não esquecendo o que há para lá da medicina.

Atualmente, as vagas para médicos aposentados são uma mais-valia para melhorar o acesso ao SNS em regiões onde faltam médicos de família?

São uma mais-valia, mas é preciso ter a clara consciência de que esta medida não vai resolver os problemas do SNS. É preciso haver uma mudança gigante do modelo organizacional do SNS! Os médicos aposentados são remendos num barco que está a ir ao fundo. Por muito que façam não vão resolver os problemas estruturais do SNS.

“Hoje, pode dizer-se que temos dois serviços de saúde paralelos: o SNS, gerido pelo Estado; e a rede privada de cuidados de saúde, assente em hospitais de grande dimensão”

Face à sua experiência de várias décadas como médico de família, o que contribui, na sua opinião, para esta situação atual de não se ter médicos suficientes, nomeadamente nalgumas regiões?

Há mais de 30 anos que se previa esta situação. Sabíamos que a partir de 2018-19 se assistiria a uma saída em massa de médicos no SNS, resultante da reforma dos grupos de médicos que entraram para o curso de Medicina na primeira metade da década de 70. Sabíamos que isso iria afetar tanto os cuidados de saúde primários (CSP), como os hospitalares.

Contudo, na altura não contámos com o crescimento da atividade privada, já que, então, era pouco significativa. Hoje, pode dizer-se que temos dois serviços de saúde paralelos: o SNS, gerido pelo Estado; e a rede privada de cuidados de saúde, assente em hospitais de grande dimensão.

Em nenhum momento, o Estado português criou condições de competitividade com o setor privado. Se do ponto de vista profissional se comparar a realidade estre os dois setores, todas as métricas são superiores no privado, com poucas exceções. Face a isto, não é surpreendente que muitos façam a sua formação na esfera pública e migrem para esse sector. Se, hoje, fosse um jovem médico, certamente ponderaria essa possibilidade.

Antigamente, SNS era sinónimo de Medicina em Portugal, com toda a sua pujança e qualidade. E os profissionais estavam profissionalmente satisfeitos. O SNS tem formado várias gerações de médicos com um nível de qualidade elevadíssimo, mas o estrangulamento do SNS é cada vez maior. Há umas décadas dizia-se, em tom de piada, que o melhor amigo do hospital privado era o hospital público mais perto. E, de facto, os casos mais críticos eram encaminhados para o SNS. Atualmente, as diferenças entre os dois setores são residuais. Os privados têm hospitais apetrechados com alta tecnologia e, em vários casos, ultrapassaram a rede pública.

Enquanto as condições do SNS se mantiverem tal como estão, vamos continuar a assistir ao definhamento progressivo do SNS e ao crescimento das estruturas privadas. Digo isto com alguma pena, mas temos de ter em conta que o importante não é seguir um modelo ideológico, mas dar resposta às necessidades de saúde da população. Futuros modelos de organização devem ser discutidos com base nesta premissa.

Note-se que o modelo português de saúde não é sequer o mais comum em países onde se exerce a melhor medicina. Há muitos países do mundo ocidental que adotaram outros tipos de organização e que têm uma qualidade igual ou superior à nossa. Mantemo-nos entre os melhores, e isso é um motivo de orgulho, mas quem tem capacidade de decisão tem de perceber que vai ter de haver evolução, que são precisos modelos adaptados aos dias de hoje, pensados de forma inteligente, para se conseguir atrair os profissionais e, assim, responder adequadamente às necessidades da população.

Quando fala em outros modelos, qual o melhor na sua perspetiva?

Há vários que merecem ser estudados. Qual o melhor modelo? Não sei, mas tenho a certeza de que não nos podemos manter agarrados a um modelo muito ideológico – dependente do Orçamento de Estado, em que as decisões são mais do Ministério das Finanças do que do da Saúde, com tremenda rigidez nas decisões, que dependem no mínimo da assinatura de um Secretário de Estado. Para dar um exemplo: a construção de um centro de saúde noutros países é algo relativamente simples, mas, em Portugal, pode demorar mais de 20 anos! Inauguram-se com pompa e circunstância unidades que já não vão responder às necessidades da população, porque, em duas décadas, essas necessidades mudaram. No setor privado, quando se decide avançar, tudo acontece rapidamente e de modo ágil. Se não houver mudança desta dinâmica vamos acabar num SNS decrépito, a operar em péssimas condições e a prestar cuidados, essencialmente, aos mais pobres, que não conseguem ter seguros ou planos de saúde. E estes, como sabemos, não são solução para tudo, nomeadamente para situações mais complexas, porque são, antes de mais, um negócio. Como se atraem os profissionais para o SNS? Com unidades de elevada qualidade, bem apetrechadas e com melhores remunerações.

Seja como for, o que me preocupa não é o modelo em si, mas o facto de haver cidadãos que não têm acesso a cuidados de saúde – e esse é o problema que temos de resolver.

“Há boa-fé por parte dos partidos e dos seus decisores, existe noção da importância do SNS, mas falta um golpe de asa que permita garantir a sustentabilidade futura do modelo, a sua maior flexibilidade e rapidez de decisão e de concretização”

Portugal iniciou a reforma dos CSP, tendo por base o modelo do NHS do Reino Unido…

Exato, mas a Clínica Geral britânica – que ainda é uma referência – assenta num modelo de contratação que, na nossa reforma mais recente, é muito próxima do que classificámos como modelo C. A exceção é a Escócia, que tem uma estrutura mais idêntica à portuguesa, mas os restantes centros de saúde foram originalmente unidades de propriedade de médicos, que se organizam em pequenas empresas e que contratualizam com o Estado.

Quando se fala em modelo C há quem comece a ‘rasgar as vestes’, por considerar que se está a privatizar o SNS. Contudo, o modelo C estava previsto no início da reforma dos CSP, tendo como base cooperativas e IPSS. Resolveria todas as situações? Não, claro, mas pode ser uma opção de flexibilidade na criação e acesso aos CSP.

Temos 40 e tal anos de SNS, que nos permitem perceber que este modelo estatizado, rígido, completamente dependente de um Orçamento de Estado e de um Ministro das Finanças, apenas serve para trucidar ministros da Saúde – quase sempre pessoas com provas dadas e de um amplo espetro político. Pode-se ter direções executivas, reorganizar e mudar nomes às estruturas… mas estamos a perder tempo se não se alterar o que está mal de base, começando pelo modelo de financiamento da saúde. Nós, mais velhos, já vimos este ciclo: durante 10 anos testa-se uma ideia na moda, aplaude-se, depois recomeça a entropia. Do meu ponto de vista, estamos a ir de vitória em vitória até à derrota final.

Deveria existir um compromisso/pacto em saúde entre, pelo menos, os dois principais partidos, sobretudo numa altura em que as legislaturas são cada vez mais curtas?

Se se analisar de forma crítica o que é a postura do PS e do PSD, vemos que são muito parecidos na sua atitude geral, tanto ideológica como técnica. Não há nenhum partido que queira o fim do SNS. Este ponto é consensual. O SNS é uma joia da revolução portuguesa e um dos seus grandes avanços. No que os vários partidos do espetro político diferem ideologicamente é na estratégia de sustentabilidade, progresso e evolução do sistema. Nesse ponto, os partidos do arco do poder parecem encalhados.

Melhor ou pior, ambos têm dado pequenos passos, mas sem mudanças críticas. Há boa-fé por parte dos partidos e dos seus decisores, existe noção da importância do SNS, mas falta um golpe de asa que permita garantir a sustentabilidade futura do modelo, a sua maior flexibilidade e rapidez de decisão e de concretização, para que haja respostas adequadas e céleres. As mudanças a que assistimos são, essencialmente, remendos.

Veja-se, por exemplo, a história dos concursos para MGF. Criaram-se pequenos incentivos, como vagas para zonas carenciadas, mas o resultado é sempre o mesmo. As localidades com maior escassez de médicos de família continuam vazias. Temos de refletir por que razão isto acontece, já que é algo que se repete ao longo de anos. É intuitivo que o problema reside em serem locais onde as pessoas não querem viver e, ou, onde faltam as condições mínimas de exercício. É preciso ser inovador, ter a coragem de inovar. A transferência para os municípios de algumas competências em saúde tem levado as câmaras municipais a apostar em medidas para atrair médicos. Contudo, o seu papel hoje é mais interveniente no que diz respeito a assistentes operacionais ou a espaços em torno do centro de saúde. São aspetos importantes, mas não são o âmago da questão, que é ter equipas multiprofissionais, capazes e interessadas em cuidar da população. Se a um médico forem oferecidas melhores condições laborais, financeiras e de satisfação na área privada, vai optar por não integrar o SNS.

Nesse caso, deve manter-se a complementaridade entre setores, em que o público contrata serviços ao privado?

Essa é uma decisão política. Repito: o mais importante para mim é que se garanta a prestação de cuidados a todos os cidadãos, nas melhores condições possíveis, com cuidados gratuitos ou tendencionalmente gratuitos, como é filosofia do SNS.

“Fujam do mito do médico herói que resolve tudo para não acabarem em burnout. Quando acabar a consulta vão para casa e esqueçam tudo o resto”

Que impacto é que estes problemas estão a ter ou vão ainda a ter no futuro da MGF?

O impacto não é imediato, porque esta especialidade tem algumas vantagens. A primeira é que a MGF portuguesa tem uma das melhores redes de formação médica do mundo. Essa guerra ainda não a perdemos. Além disso, temos uma nova geração de formadores de elevada qualidade, com uma craveira técnica e humana excecional. Temos também uma rede no ensino pré-graduado que é extremamente sólida e que, de alguma maneira, cria condições para que os recém-licenciados saiam com o mínimo de conhecimento em MGF e com uma convicção vocacional mais maturada.

O problema é no futuro. Se se continuar a assistir a esta contração, tal como se vê em algumas especialidades hospitalares, que nem em grandes hospitais se estão a conseguir aguentar, a escassez vai agravar-se. Na MGF há uma maior distribuição de profissionais, em termos regionais, o que minimiza, por enquanto, o impacto. Mas, mesmo assim, o problema será a sangria de recém-especialistas para fora do SNS. Isso contribuirá para que, progressivamente, até os mais velhos migrem para o setor privado.

Obviamente, temos regiões, como Lisboa e Vale do Tejo, com muita falta de médicos – para mim é uma zona de catástrofe –, mas isso já era visível no final do século passado. A periferia de Lisboa e Vale do Tejo sempre teve problemas nos CSP. A única diferença é que estão, atualmente, pior por causa do aumento constante da população. Tem de haver um investimento grande por parte do Estado ou de outras entidades. A minha USF na Quinta do Conde, onde trabalhei até à aposentação, foi inaugurada em 2012, mas o plano original era de 1995… e isto não é um caso isolado! Manter as coisas com pequenos remendos vai levar ao afundamento do SNS. Ninguém quer isso!

Que palavras gostaria de deixar aos internos e especialistas de MGF, tendo em conta a sua experiência de mais de 40 anos de MGF?

Não desistam! Sejam exigentes, inovadores, não se prendam a modelos rígidos, tenham uma visão ampla e vão estagiar fora do país para ver outros modelos. Há muitas formas de fazer MGF com elevada qualidade, adaptada à realidade do paciente, da estrutura e da nossa equipa. Não se prendam em modelos rígidos de tarefas; a flexibilidade numa equipa é cada vez mais importante.

Fujam do mito do médico herói que resolve tudo para não acabarem em burnout. Quando acabar a consulta vão para casa e esqueçam tudo o resto. Tenham hobbies e protejam a vossa saúde mental. Só assim vão conseguir olhar para trás, um dia, e ver que foi muito bom ser-se médico, que ajudaram os doentes, mas também que se ajudaram a vocês mesmos e à vossa família.

Maria João Garcia

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