A Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) devia ser o motor da investigação em Portugal. Mas tornou-se símbolo da precariedade, da imprevisibilidade e do bloqueio orçamental. Este artigo não é um ataque à FCT, é uma chamada de atenção para o facto de esta ser usada como ferramenta política que não serve a Ciência e que precisa de uma reforma estrutural, precisa ser reinventada, não apenas com concursos avulsos anunciados em eventos de ciência e anúncios de ocasião para as camaras de televisão.

A FCT está a falhar na sua missão essencial: garantir financiamento estável, previsível e transparente para a investigação científica. E não o faz por incompetência técnica ou má vontade institucional, mas porque foi desenhada, e continua a ser gerida, como instrumento de contenção orçamental controlada exclusivamente por questões financeiras, e não como pilar estratégico do desenvolvimento nacional.

Desde 2023, a dívida acumulada da FCT a universidades e centros de investigação ultrapassa os 99 milhões de euros. Destes, mais de 40 milhões dizem respeito a compromissos com atraso superior a seis meses. Numa economia de mercado, isto teria consequências legais graves. No sistema científico, traduz-se em laboratórios com saldos negativos, projetos em suspenso, pessoal técnico em lay-off disfarçado e investigadores sem financiamento garantido apesar de concursos ganhos.

O problema é sistémico. Normalizou-se a disfunção. E normalizou-se que as segundas, quartas e sextas se diz uma coisa e às terças e quintas o seu contrário. E a palavra, infelizmente, vale pouco nos dias de hoje. E isto passa-se na generalidade das instituições portuguesas. O Orçamento do Estado para 2025 prevê cativações de quase 4 mil milhões de euros, um recorde, e entre os programas mais afetados estão precisamente os da Educação, Ensino Superior e Ciência. As cativações são cortes orçamentais encapotados: verbas aprovadas que não são libertadas, adiando ou inviabilizando a execução dos projetos.

As instituições são obrigadas a funcionar com base na incerteza. No caso da FCT, estas restrições significam atrasos de meses nos pagamentos a projetos aprovados, cortes retroativos no financiamento de centros e adiamento sistemático de concursos. Os investigadores aprendem, com amargura, que ganhar um projeto FCT pode ser apenas o início de um calvário burocrático e financeiro.

Pior ainda: muitos dos concursos são lançados sem garantia de verba imediata. A atribuição é feita, mas os pagamentos não têm data. O calendário de avisos é irregular. E a confiança na própria estrutura começa a desaparecer, como mostram os sucessivos alertas de universidades, sindicatos, associações científicas e até de ex-dirigentes da própria fundação. A verdade é que sem planos plurianuais, sem garantia de manutenção e sem pessoal técnico especializado, este investimento corre o risco de ser mais um catálogo de boas intenções. Já aconteceu no passado: equipamentos caros que ficam inutilizados por falta de orçamento para operar, laboratórios que fecham fora do horário laboral, projetos aprovados sem meios para arrancar. Porque não se quer verdadeiramente investir na investigação. Navegamos entre eventos políticos cheios de cerimónias, muitos cumprimentos e promessas vagamente entusiasmadas, mas poucas ações concretas que sirvam, de facto, a ciência em Portugal.

Na verdade, a FCT tornou-se um gestor de escassez, e não um catalisador de inovação. Hoje, a FCT parece ocupada sobretudo em gerir constrangimentos: pagar o que está mais atrasado, adiar concursos para evitar sobrecarga orçamental, negociar dívidas com as universidades, adaptar as linhas de financiamento à incerteza fiscal. A consequência disto é um ciclo de desmotivação e precariedade: investigadores que vivem de bolsas sucessivas, sem contrato de trabalho nem proteção social; jovens doutorados que saem do país por falta de estabilidade; centros de investigação que não conseguem contratar técnicos especializados porque os pagamentos chegam tarde ou nem chegam.

A reforma da FCT não pode ser meramente administrativa. Precisa de um novo contrato político, com coragem e compromisso interministerial. Perante a fragilidade estrutural da FCT e do sistema científico nacional, impõem-se medidas claras, corajosas e exequíveis. A primeira passa pela criação de uma lei-quadro de financiamento plurianual da ciência, com metas orçamentais vinculativas e com execução garantida num horizonte de três anos. Só com este tipo de estabilidade legal será possível ultrapassar os ciclos de incerteza que minam o planeamento científico e a atração de talento.

Em paralelo, é urgente blindar a FCT contra as cativações genéricas que, todos os anos, corroem a sua capacidade de executar o orçamento aprovado. O financiamento da ciência não pode depender das flutuações de tesouraria nem de prioridades conjunturais. Países como a Alemanha, a Holanda ou a Dinamarca já implementaram este tipo de salvaguarda para as suas agências científicas, Portugal pode e deve fazer o mesmo. A criação de um fundo rotativo de estabilização é outra ferramenta essencial. Com uma dotação inicial da ordem dos 100 milhões de euros, este mecanismo permitiria à FCT fazer face a atrasos nos pagamentos, regularizar dívidas pendentes e garantir fluxos de tesouraria em momentos de bloqueio administrativo. Seria, em suma, uma almofada de curto prazo contra a crónica imprevisibilidade do sistema.

Para devolver previsibilidade à comunidade científica, é também fundamental estabelecer um calendário anual fixo e transparente de concursos, a publicar logo no início de cada ano civil. Este calendário deverá incluir regras claras,datas de avaliação e prazos de pagamento vinculativos. Anúncios feitos com meses de atraso ou cancelados à última hora não são apenas injustos, são desrespeitosos para quem trabalha com seriedade. Finalmente, qualquer reforma verdadeira exige transparência radical. É por isso que se impõe a criação de um portal público de execução orçamental da FCT, com dados em tempo real sobre concursos abertos, montantes atribuídos, pagamentos efetuados e valores em dívida. Sem visibilidade e escrutínio públicos, continuará a faltar a confiança que a ciência tanto precisa e merece.

Qualquer reforma séria da FCT terá de assentar, antes de mais, numa governação independente e profissionalizada, com um conselho diretivo escolhido pela comunidade científica e supervisionado por um órgão externo que defina prioridades plurianuais. Em paralelo, é imperativo estabelecer financiamento-núcleo multianual para centros avaliados como “excelentes”, garantindo salários a técnicos, manutenção de infraestruturas e a contratação de talento, indexando ainda parte desse apoio a práticas de ciência aberta, patentes e impacto social. Urge igualmente criar uma carreira técnica e administrativa estável, capaz de operar equipamentos e gerir projetos, bem como simplificar drasticamente a burocracia através de um portal único interoperável com as plataformas europeias, limitado ao mínimo indispensável de relatórios intermédios.

Para dar fôlego financeiro de longo prazo, propõe-se a constituição de um fundo patrimonial, para a ciência, alimentado, por exemplo, com receitas da exploração de lítio ou da transição energética cuja rentabilidade anual financie bolsas-semente e investigação de risco elevado. Por fim, financiamentos 50/50 co-financiados com a indústria e com autarquias ou regiões reforçariam cadeias produtivas locais, incluindo cláusulas de inovação responsável para que cada euro público se converta em empregos qualificados, propriedade intelectual partilhada e verdadeira transição tecnológica e ecológica.

Portugal tem talento. Tem universidades e centros com produção científica de excelência. Mas tudo isso está em risco se continuarmos a tratar a ciência como um luxo orçamental, gerido à vista, entre cativações e concursos que não se pagam. Não basta proclamar que a ciência é uma “prioridade nacional”, é preciso que o sistema funcione, que os compromissos se cumpram e que os investigadores deixem de viver num limbo burocrático.

Enquanto continuarmos a financiar a ciência com remendos e eventos fotogénicos, ela será feita em Londres, Berlim ou Copenhaga, mas não em Coimbra, Aveiro ou Braga. Ainda assim, não é tarde. Temos o talento, temos as instituições, temos até a capacidade de sonhar mais alto.

Falta apenas a coragem de fazer da ciência não um ornamento político, mas um verdadeiro projeto de país. E essa decisão, essa escolha estrutural, está nas nossas mãos.