
Em Portugal, o sector da saúde tem sido uma das áreas mais instáveis da governação. Nos últimos dez anos, cinco ministros ocuparam a pasta da Saúde. Esta sucessão, por si só, revela a dificuldade de assegurar continuidade das reformas necessárias num sistema sob pressão constante, com problemas estruturais, subfinanciamento crónico e uma enorme exigência social.
Em alguns casos, os ministros não abandonam funções por má conduta, ilegalidades, políticas erradas ou no fim de ciclos políticos. Saem porque os serviços não funcionam como as pessoas esperam. As longas esperas nas urgências, o encerramento de unidades, a escassez de profissionais ou as dificuldades no acesso aos cuidados geram indignação pública. E essa indignação transforma-se, com frequência, em exigência de demissão quase automática.
Esta reação, embora compreensível, não tem paralelo noutras áreas da governação. Na saúde, qualquer incidente com impacto mediático, mesmo quando resulta de limitações técnicas ou falhas do sistema fora do controlo político direto, é sempre tratado no plano da responsabilidade governativa.
Parte desta perceção é alimentada pelo tratamento jornalístico dado à Saúde. A cobertura mediática privilegia o caso individual, o episódio trágico, o conflito visível. O contexto técnico e os fatores estruturais muitas vezes não são explicados. E o contraditório é frequentemente ausente ou insuficiente. Esta narrativa, centrada na personalização da responsabilidade, incentiva uma cultura de julgamento imediato, que dificulta a análise racional e o debate informado.
É evidente que a comunicação social tem um papel essencial no escrutínio da governação e na denúncia do que está mal. Mas a lógica mediática não pode privilegiar apenas o impacto sobre a explicação. E, num sector como a saúde, onde as decisões são complexas e com consequências humanas diretas, este ciclo prejudica a construção de soluções.
A saúde é, aliás, por definição, um sector de elevada complexidade. Todos os dias há ocorrências a lamentar, como erros, diagnósticos tardios, tratamentos ineficazes, profissionais exaustos e serviços sobrecarregados. Mesmo nos melhores sistemas, a falha é inevitável. Mas confundir falhas com incompetência política é ignorar a natureza do sector e é também criar uma expectativa impossível de cumprir.
Este tipo de abordagem tem consequências. Pressiona os decisores políticos a evitar riscos, a responder à agenda mediática em vez de se focarem no planeamento estratégico, a privilegiar medidas visíveis em detrimento de reformas duradouras. A governação transforma-se na gestão do imediato. E as reformas que exigem tempo, estabilidade e negociação são colocadas em segundo plano.
É neste contexto que muitos ministros que procuram reformar acabam por sair. Ao desafiarem interesses instalados, proporem novos modelos de organização e redistribuírem competências, enfrentam resistências internas e externas. Reformar implica contrariar equilíbrios existentes, alterar rotinas, redistribuir recursos e protagonismo. E quem o tenta fazer, muitas vezes, paga um preço político elevado.
O caso dos enfermeiros é exemplo disso. Há consenso técnico e político sobre o seu papel central na melhoria do acesso, da qualidade e da eficiência dos cuidados. Ainda assim, embora se reconheçam alguns avanços recentes, continua por concretizar em pleno a valorização efetiva da sua autonomia, da prática avançada e da sua presença nas tomadas de decisão. Porquê? Porque muitas reformas continuam a ser pensadas a partir de lógicas profissionais que resistem à redistribuição de poder.
Sem expor essas resistências, o debate torna-se superficial. Reduz-se a slogans e polarizações mediáticas. E com isso perde-se a oportunidade de reformar verdadeiramente o sistema.
Portugal precisa de estabilidade e coragem para reformar o sector da saúde. Isso implica escrutínio e responsabilização política, sim, mas exige também maturidade democrática. É fundamental reconhecer os limites do sistema, manter o caminho reformista mesmo quando gera desconforto e manter o foco nos resultados de médio e longo prazo.
E aqui, o papel da sociedade é fulcral. Não basta exigir mudanças. É necessário compreendê-las e apoiá-las. Se cada tentativa de reforma for bloqueada à primeira perturbação, estamos condenados a repetir um ciclo permanente que se arrasta há longos anos.
A saúde não se resolve com demissões como resposta a falhas no sistema nem com gestos reativos. Resolve-se com políticas consistentes, com avaliação rigorosa, com profissionais valorizados e com uma cidadania exigente e informada. Só assim se poderá construir um sistema mais justo, eficaz e centrado nas pessoas.